Debate marca lançamento de A Cozinha Venenosa – Um jornal contra Hitler

No salão lotado da Livraria Martins Fontes, em São Paulo, o público debate o livro “A Cozinha Venenosa – Um jornal contra Hitler”. Foto: Eliana Assumpção.

O livro da jornalista Silvia Bittencourt, capta de maneira muito eficiente a efervescência política na Baviera após a Primeira Guerra Mundial, quando esta região alemã viveu, em curto período, uma revolução de esquerda e uma contrarrevolução de direita, que acabou prevalecendo.

A cidade de Munique mergulhou em caos anárquico, no pano de fundo da conturbada e frágil República de Weimar. Neste caldo de cultura, Hitler e o partido nazista cresceram, e um pequeno jornal social-democrata lhes fez oposição cerrada e corajosa, desde o início. A obra, a primeira no mundo dedicada exclusivamente ao tema – e publicada pela Editora Três Estrelas, com o apoio da Conib -, trata da história deste jornal, o Münchener Post (MP).

Em debate realizado nesta terça-feira, 2 de julho, com a presença do crítico Manuel da Costa Pinto, da Folha de S. Paulo, a autora contou ao público que lotou a Livraria Martins Fontes, em São Paulo, detalhes sobre sua pesquisa e aspectos marcantes da trajetória do jornal.

A pergunta mais premente a respeito da obra é: por que um livro como este não existia na Alemanha? Silvia explicou que somente estudiosos da imprensa alemã conhecem a história do MP. Eles o consideram um jornal pequeno (sua tiragem máxima foi de 15 mil exemplares, com não mais que 12 páginas) e sensacionalista. E lhe perguntaram que interesse poderia haver no Brasil por um livro como este. “Qualquer livro sobre Adolf Hitler traz interesse”, ela respondeu. “Além disso, o jornal era lido por intelectuais e pela elite política”.

O MP foi o primeiro veículo a perceber a singularidade de Hitler, em meio a uma miríade de grupos nacionalistas na Baviera. Para Silvia, isso se deveu ao fato de o jornal ter fontes internas nos partidos de oposição à social-democracia de Weimar, mesmo no partido nazista, o que lhe permitiu ter um olhar mais agudo sobre a situação política. Ela ressaltou que grupos nazistas rivais plantavam notícias no MP – um jornal que fazia oposição ferrenha ao partido – para se atacarem.

O jornal usava de ironia e sarcasmo para cutucar Hitler, explorando histórias pitorescas sobre o então aprendiz de ditador e sempre levantando dúvidas sobre a origem do sustento dele – algo que irritava Hitler profundamente. “Os próprios nazistas se perguntavam: quem ele pensa que é?”, lembrou Sílvia. Hitler usava o adjetivo “venenoso” para aqueles a quem odiava mais profundamente, e chamava a redação do MP de cozinha, que injetava seu veneno sobre “pessoas corretas”.

Silvia faz na obra uma radiografia da imprensa alemã nos anos 1920 e 1930, traça um perfil da redação do MP, que tinha jornalistas judeus, e também conta seu destino após a liquidação – literal – do jornal em 1933, poucas semanas após a ascensão de Hitler ao poder.

O conflito entre os nazistas e o jornal teve fases distintas. Até 1923, ficou restrito a provocações. Depois, com a crise da hiperinflação e a ocupação da região industrial do Ruhr pelos aliados, os nazistas passaram a invadir o jornal, agredir jornalistas e quebrar a redação.

Tudo isso sob vistas grossas do governo bávaro: “Hitler jamais teria sido o que foi se não estivesse na Baviera. Apesar de não ter a simpatia de ninguém, ele era tolerado, e a justiça era muito parcial: condenava apenas a extrema-esquerda”, disse Bittencourt. A jornalista aborda também o julgamento de Hitler, após o fracassado “Golpe da Cervejaria”, em 1923: “Aquilo foi uma palhaçada, e Hitler desempenhou mais o papel de acusador do que de réu”.

Ela observou que, em comparação com o norte da Alemanha, a Baviera tinha poucas fábricas e poucos operários. A vida cultural em Munique, que no final do século 19 era comparável à de Berlim, definhou: “Mesmo Brecht tentou encenar uma peça na cidade, mas desistiu”.

Alcino Leite Neto, editor da Três Estrelas, observou no acalorado debate na Martins Fontes que o MP foi o primeiro jornal a tratar da “Solução Final da Questão Judaica”. Em 9 de dezembro de 1931, o jornal publicou uma nota alertando sobre os perigos que corriam os judeus caso os nazistas tomassem o poder. Sua fonte foi um texto nazista considerado “extremamente secreto”, porque o partido temia “as reações do exterior, sobretudo de Londres e Paris”. Segundo o jornal, ele estabelecia diretrizes para a solução final – que foi oficialmente organizada em janeiro de 1942.

Por que ninguém deu atenção a essa notícia? Segundo Silvia, talvez porque o MP já tivesse um histórico de publicar documentos falsos, forjados pelos próprios nazistas. Dessa vez, era tristemente verdadeiro…

Alcino Leite Neto agradeceu o apoio da Conib, que financiou parte da pesquisa, e o considerou “muito importante” para a publicação do livro. Na Alemanha, a obra ainda não é conhecida. Será levada pela Três Estrelas para a Feira do Livro, em Frankfurt, em outubro próximo. O país homenageado na edição deste ano é o Brasil.

Silvia Bittencourt é jornalista, colaboradora da Folha de S. Paulo, tradutora e docente do Laboratório de Línguas da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, onde vive desde 1991. Foi repórter e correspondente da Folha em Frankfurt.

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